sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O MÉDICO: CONCILIAÇÕES PSICOLÓGICAS E PROFISSIONAIS



O Médico

Conciliações Psicológicas e Profissionais


In memorian
Dr. Adib Cury
Dr. Nelson Gimenes
Dr. Domingos José Aldrovandi
 
Justificativa 
Intróito
O princípio dos sonhos
A casa da morte
A casa da vida
A lapidação do poder
O exercício do poder
A maturidade e o ocaso
Conclusão
Apêndice


Justificativa
Quando sugeriram para desenvolver este tema, extremamente complexo, fiquei um tanto temeroso, meditando como coadunar o entendimento das condutas intrínsecas do profissional da área de saúde e as miríades das contínuas transformações existentes na área técnica, de valores morais intrínsecos, culturais, sociais, psicológicos em um documento que não fosse por demais extenso nem cansativo de ser lido, e assim transforma-lo em algo mais acessível ao leitor. Também seria de importância que estas considerações não ultrapassassem códigos de ética, bem como não ferissem a sensibilidade de quem quer que fosse.
O tema em si constitui-se verdadeiramente uma tese, o que poderia resultar inclusive numa monografia. Gostaríamos de discutir os dilemas existenciais que atravessa o médico nos seus diversos períodos existenciais (profissionais), como ele os enfrenta, e as consequências que ele se expõe em razão de sua consciência, atos e limitações, bem como das experiências adquiridas e do meio que está submetido. Mas sabemos da impossibilidade, frente à complexidade e extensão do assunto, sendo que iremos apenas pincelar estes aspéctos dentro de uma exposição mais simplista, associando a experiência adquirida nestes quase cinquenta anos de vivência com outros médicos e doentes.
Dentro da opção do desenvolvimento do tópico acima, elegemos os formados próximos à década de 1970. Estas gerações vieram a sofrer uma maior influência de tendências liberais, frutos de colocações de “rebeldia” contra os padrões sociais vigentes na época, com uma série de movimentos sociais (hippie, Guerra do Vietnan, etc).

Intróito
“Eu, Sinuhe, filho de Senmut e de sua mulher Kipa, escrevo isto. Não o escrevo para a glória dos deuses da terra de Kan porque estou cansado de deuses, nem para a glória dos faraós, porque estou cansado de seus feitos. Também pouco escrevo por medo ou por qualquer esperança, no futuro, escrevo para mim apenas. O que eu vi, conheci e perdi durante toda minha vida, foi coisa demasiada para que me domine um vão temor, e quanto a algum desejo de imortalidade, estou tão exausto disto quanto dos deuses e dos reis. É apenas por minha causa que escrevo, por tal motivo e essência diferindo eu de todos os escritores passados e vindouros.”
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“Sim, pois eu Sinuhe sou um ser humano. Vivi em todos aqueles que viveram antes de mim, e viverei nos que vierem depois de mim. Viverei nas lágrimas e nos risos humanos, no medo e na mágoa humana, na bondade e na torpeza humana, na justiça e no erro, na fraqueza e na força. Não desejo oferendas na minha sepultura e nem na imortalidade para o meu nome. Isto foi escrito por Sinuhe, o egípcio que viveu sozinho todos os dias da vida”.
Quando optei por iniciar esta exposição com as palavras de Mika Waltari, do primeiro e último parágrafo do “O Egípcio”, muitos poderão pensar no desatino entre o título deste escrito e as linhas acima.
O mesmo seria dito se me referisse a Sidarta, de Hesse. Após toda sua vereda, termina seus dias sentado à beira do caudal, vendo as águas fluírem... ou imaginar Kim (de Rudyard Kipling) e seu carma na Índia colonial britânica, ou ainda o de Dr. Jivago (de Boris Pasternack) na Rússia no começo do século XX.
Mas existe um motivo. Para aqueles que conhecem as obras citadas, poderão se requintar com as finesses do juízo, para os que desconhecem os detalhes, poderão engendrar o que é ser possuidor do que se possa imaginar, bens materiais, poder, realização de qualquer cobiça tangível, e ser constrangido terminar seus dias no exílio (físico e/ou psicológico), aferrolhado até a morte, fora do âmago de suas metas e/ou do berço natal, tanto involuntariamente ou como opção existencial induzida, lutando pelos seus valores e realidades íntimas ou procrastinando-as totalmente frente ao desenrolar-se das situações. Não devemos ignorar que estas realidades não são estáticas, mas vão sendo moldadas no âmago de cada um conforme as experiências, vivências e situações do dia a dia. Também poderíamos dar asas à imaginação e esvoaçar com os pensamentos em como estes elementos humanos constituem-se em joguetes dentro do destino a que estão algemados.
Se estes fatos transferirmos para a crua rotina existencial dos tempos modernos, poderíamos ir a relembrar entre muitos outros, dos exemplos de Pasteur, Sommelweis, Thomas Edward Lawrence (Os Setes Pilares da Sabedoria), de Mahatma Gandhi, Mandella...
Vemos que os fatos estão dentro de um paralelo, e observamos uma similaridade entre as obras mencionadas e o cotidiano. Chega um momento que somos colocados em dúvida se realmente todos estes romances são somente fruto da imaginação fértil de seus autores, ou se obnubiladamente fazem referência à fatos reais, que foram devidamente romanceados.
Independentemente de querer colocar em discussão os tópicos pré-determinismo ou o livre arbítrio existencial do homem, temos a sensação que cada elemento em sua existência segue por uma vereda muito justa, e dentro das raias do quase inevitável parece que inflexivelmente não consegue escapar à roda da vida.
Com isto queremos deixar transparecer de um lado a inexorabilidade das ocorrências associada a uma total efemeridade das coisas, atos, ações, poder, ou qualquer outro fato. É uma verdadeira dualidade. Aparentemente tudo seria circunstancial, assim como a própria existência? Realmente nada melhor do que o tempo para dar a devido entendimento aos fatos, e ao seu findar, acaba por eclipsa-los definitivamente e para sempre sob sua manta, fazendo ocaso a tudo que eventualmente tenha acontecido na roda da vida. A real verdade de toda e qualquer ventura, seja ela fruto de um pré-determinismo ou livre arbítrio, é que ela sempre finda, e em seus últimos sôfregos, acaba por encerrar sua existência na nulidade e no abismo do esquecimento. Rememora-se uma velha frase: “O tudo é nada, e o nada absorve a si mesmo...”
Neste mundo de anequins, cada um representa seu papel, e tal como no teatro, chega o momento que as luzes se apagam e a cortina cai. Tudo é essencialmente uma questão de tempo. Mas enquanto ocorre a função, cada “bobo da corte” trata de o melhor possível de representar seu papel. Isto me traz à mente uma frase que diz “que a impetuosidade é uma característica da juventude, e que à maturidade associa-se a prudência e perseverança.”
O ímpeto que domina a mente jovem, com seu intuitivo complexo de super-homem (que em alguns raros pode até simular onisciência e onipotência) ganha formas quase dantescas quando observado pelo prisma da cautela e persistência. Chega inclusive a rememorar em uma visão mais simplista o “homem–além: Übermensch” de Friedrich Nietzsche, onde suas "virtudes" se assim pudéssemos dizer, são o orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a desconfiança e inimizade, a veneração ímpar, a vontade inabalável, a vontade de poder, a capacidade de domínio quase permanente e a inatingibilidade.
Se quase todos, em maior ou menor grau, vivenciam esta perene fase existencial durante os primórdios de sua existência adulta, poucos a saborearão em quase sua plenitude, e raros a manterão por tempo maior, bem como raríssimos permanecerão com elas como uma contínua verdade insofismável. A liberdade sem limites é algo assustador e extremamente temerário, com consequências imprevisíveis. Apesar de carreada de temeridades, por beirar o limite entre a sanidade e a loucura com consequências inopinadas, o prolongamentos não insanos destas características serão privilégios de poucos prodigiosos, e é para esses poucos que se mantém equilibrados neste fio da navalha, é que a vida é feita para o sucesso inavaliável e incontestável.
Estas características são a forja dos raros e ululantes líderes sob os mais diversos prismas sociais. A permanência de algumas destas capacidades retro estereotipadas farão delas pessoas altamente diferenciadas em relação ao meio, geralmente aptas à alta ascendência sobre a população.
Estas pessoas tornam-se verdadeiros deuses, mitos vivos que beiram a imortalidade. Assim ocorreu com uma série de pessoas com tendências humanísticas, com senhores da paz e da guerra, com músicos, pintores, filósofos e outras áreas sociais (independente de suas falácias ou verdades).
O médico, com sua condição de responder continuamente pelo bem estar e vida de outro similar, está a um passo deste nível. Endeusado enquanto permanece como respondendo pela saúde de seu próximo, é deificado pelos seus sucessos, e permanece sendo tratado com verdadeira reverência e excessiva admiração durante o exercício profissional, e algumas vezes extrapola esta fase, sendo lembrado pelas suas características humanitárias. É sua função tratar o doente, amenizar seu sofrimento e por último consolar ao paciente e a família. Mas também pode ser considerado como a imagem do próprio demônio quando quebra seus objetivos e regras, e coloca outros valores como prioritários às metas da saúde.

O Princípio dos Sonhos
Quando começam os sonhos, e as ambições existenciais? Sem dúvidas, muito é uma interação entre as eventuais tendências inatas da criança, somadas à ingerência do meio ambiente, com maior frequência, da família, em especial os pais.
Uma máxima cita que “há três modos de se atingir o principado, por via vaginal (quando a pessoa é descendente da realeza), por via peniana (quando ocorre o casamento entre um plebeu e uma pessoa da realeza)”. São todos métodos com humores burgueses de se crescer na vida. Há outro método, mais voltado aos proletários. “É o modo escrotal (quando a adulações ou recompensas induzem as benemerências).” Exceto o primeiro, eles são de resultados às vezes duvidosos, mas esporadicamente coroados de sucesso.
São eles que iniciam o acalentar das ambições, em maior ou menor grau. Realmente, os filhos são sonhos vívidos das ambições e metas (nem sempre realizadas) dos pais, almejando uma ascensão econômica e social que não conseguiram atingir. Com menor incidência, é uma continuidade da atividade familiar, que se comporta como herança cultural. Ainda que raramente, pode ser uma manifestação inercial da ambição da própria pessoa, que tem nesta atividade a realização de seus objetivos, ou como um passo em atingir suas ambições.
O futuro médico já em seus primórdios da infância começa a manifestar uma curiosidade para os processos biológicos. Este “desejo de saber” vai se exacerbando com o crescimento, e por fim, geralmente durante a fase de adolescência já é bastante marcante, e quase já define a provável atividade profissional da pessoa.
Definida a meta e convicto de seu futuro, vai nosso jovem a procura de um lugar para transformar seus sonhos em realidades.

A Casa da Morte
Conseguindo um lugar ao sol, depois de dificuldades infindas, trocando muito de sua adolescência por um rígido sistema de estudo, consegue finalmente ser acolhido dentro de um estabelecimento de ensino superior voltado ao ensino médico.
A sensação de saber que foi admitido é inebriante e única. Já o coloca dentro de uma elite, por ter conseguido a colocação entre muitos.
Mas esta sensação não irá durar muito, talvez por algumas semanas. Terá que aprender uma outra lição muito mais importante na vida, a humildade, a fazer reverência e respeito à própria vida e morte. E da pior forma possível, porque logo ao início de suas atividades, é levado ao laboratório de anatomia, onde cadáveres inteiros ou suas peças serão utilizados para que possa estudar e dominar o corpo humano em suas minúcias.
A sensação de quem teve nenhum ou pouco contato com a morte, colocada vis a vis com o corpo amarelo bronzeado, ressecado, que jaz deitado sobre a fria pedra de mármore, o odor de formol, provocando ardência nos olhos, coriza, sufocando, e queimando as pontas dos dedos, a face da morte, às vezes serena, às vezes transfigurada pela dor, o corpo geralmente magro, caquético, quiçá corroído pelo sofrimento dos anos de penúria e doença, o provável descaso familiar e abandono que aquela pessoa que teve seus sonhos e desejos, e a que foi submetida para acabar no tanque de formol e mesa de anatomia, nos faz mais do que nunca instintivamente conscientes da transitoriedade da vida, da desconfiança com nossos entes mais próximos, do alheamento existente entre a vida e a morte, da total incerteza do que o futuro reserva a todos nós, e como, de algo que nem era sequer cogitado pela imaginação, como agora a morte, antes quase totalmente ignorada, cresça e tome forma perante nossos olhos, fazendo com que aquela sensação do “super-homem” se torne tão quebradiça e volátil, tão sem significado. Mas como a fênix que renasce das cinzas, esta sensação de “super-homem” ainda retornará no futuro de uma forma mais acentuada, mais inquebrantável, para não dizer, até megalomaníaca.
 Tomamos então a consciência de que realmente somos mortais como todos os outros, senão ainda mais, por estarmos a partir deste momento, a viver continuamente com a morte aferrolhada a nós, como a eterna esposa que jamais nos abandonará e sairá de nosso lado. Somos então, ainda na flor de nossa juventude, vilmente violentados em nossas fantasias, vemos algumas nossas ilusões desmoronarem, sendo conscientizados e imersos na fria e crua realidade existencial. É o começo de nosso massacre psicológico existencial. É o último alento de nossos sonhos quase pueris que se esvaem, gota a gota. Então começamos a nos tornar adultos...

A Casa da Vida
Após dois anos de sofrimentos que começam a moldar indelevelmente nossa personalidade, a ausência de tempo próprio, de dias e noites imersos em novos conhecimentos que se avolumam com o passar dos dias, é chegado o momento da recompensa: começamos a ter acesso à casa da vida. É quando, nos afastando dos insanos laboratórios, iniciamos o contato médico com humanos.
Inicialmente, somos levados à colher informações de modo adequado (anamnese). Já se vão passados mais de quarenta anos, e esta é uma frase que ouvi de um paciente, que até hoje guardo com todo o carinho: “... dor é sinal de vida...”. Marcante porque partiu de um idoso em estado terminal, em pleno fim de semana. Mais doloroso ainda, pois quando voltei na semana seguinte a procura-lo e falar com ele, soube que havia falecido. E de todas as conversas tidas, estas suas palavras ainda permanecem ribombando em minha mente...
Esta vivência obriga-nos a ter consciência de um fato extremamente importante: o tempo é inexorável. Não há momento que possa ser recuperado. As coisas que tem que ser feitas, devem ser feitas de imediato. Não existe o “...daqui a pouco eu faço...”. O momento é agora, ou nunca mais...
O exame físico do paciente é fundamental. Ainda, na década de 70, estávamos no tempo que o que tínhamos de instrumentos eram o estetoscópio para ouvir, nossas mãos para tocar e sentir, os olhos para observar, os exames de laboratório e o R.X. para confirmarem nossas idéias. Os modernos meios diagnósticos hoje presentes eram inexistentes.
A história e o exame físico eram nossas armas. Conhecíamos o corpo humano normal. Agora era o momento de estudarmos as doenças, e vivermos junto aos doentes e assimilar em nossas mentes as manifestações das doenças.
Aos poucos, nossas primeiras e singelas observações de pacientes dia a dia se tornavam mais complexas. Novas perspectivas iam se abrindo momento a momento. Nossa convivência com os pacientes era fundamental para sedimentar o conhecimento teórico que havíamos recebido, e desenvolver o raciocínio clínico, que dia a dia se aprimorava.
Paralelamente com estes fatores, a habilidade e a técnica também eram desenvolvidas nos campos cirúrgicos, o que, de uma forma ou outra, nos impelia a opção de atividade profissional. Nuca esqueço-me da orientação de um grande cirurgião que muito me ensinou, Dr. Avediz Nahas: “... você precisa aprender a ver com a ponta dos dedos...”
Nesta fase de preparação se passaram mais três longos anos. É a fase de desenvolvimento da autoconfiança.  Paulatinamente, de simples “colhedores de histórias”, nos eram transferidas as responsabilidades do exame físico, da prescrição e terapêutica. Éramos cada vez menos tutelados, mas ainda sob uma observação austera para rigorosa terapêutica correta e sucesso dos resultados almejados.
Depois de longos seis anos de atividades, fazíamos nosso juramento hipocrático e recebíamos nosso certificado de conclusão de curso. Agora éramos médicos. Mas, se assim éramos reconhecidos como tais, ainda nos faltava a habilidade e destreza total de assumir todas as responsabilidades inerentes à carreira abraçada. Havia a necessidade de mais uma fase ainda...

A lapidação do poder
Viria agora uma das mais importantes fases do desenvolvimento profissional, a de amadurecimento dentro de uma ou duas das disciplinas almejadas do recém-formado, a fase de estágio e residência. Tem ela a definição da especialização a seguir. Agora é chegada a hora de ser realmente capaz do que almeja, aprimorando seus conhecimentos.
Cada vez mais vai assumindo definitivamente a responsabilidade sobre o paciente. Agora é ele quem examina, pede exames, prescreve. Claro que ainda tem seus atos e ações discutidos, e só é corrigido caso cometa erros crassos. Os doentes sob sua responsabilidade tem todos seus procedimentos discutidos com seus colegas (e sob supervisão), que tem de fazer uma análise crítica como o paciente está sendo tratado e evoluindo. Já executa pequenas cirurgias ambulatoriais, primeiro sob supervisão e depois sozinho. Cirurgias maiores são cuidadosamente seguidas. Qualquer conduta eventualmente temerária é prontamente corrigida.
Nesta fase irá passar pelo menos dois anos, quando deverá estar plenamente apto a desligar-se do hospital escola, e atuar sozinho.
Este progressivo assumir de responsabilidades, onde cada dia que se passa, recai sobre ele o responder por seus atos, com todos os sucessos e reveses, irá formando a auto confiança e a responsabilidade do profissional em suas condutas.
Ter sob seu encargo outros recém formados, orientá-los como foi orientado, irá formando-o em profissional apto a assumir suas atividades cotidianas perante o doente, sua família e a sociedade.

O exercício do poder
Finalmente o jovem profissional é desligado do hospital onde atuou por dois anos ou mais. Tem o seu cordão umbilical seccionado. Deverá escolher um local onde irá atuar. É a fase onde sai à procura de trabalho, geralmente iniciando suas atividades como plantonista em outro hospital. Paralelamente a isto, entra em contato com outras entidades, procurando ser admitido no corpo clínico de outra entidade assistencial.
A sua formação anterior, apesar de lhe haver fornecido subsídios para enfrentar a grande maioria das patologias, ainda irá lhe gerar dúvidas em algumas condutas. Mas, se antes havia o preceptor que lhe estendia a mão, agora, vê-se ele dentro de mais um processo, onde é observado em suas condutas médicas pelos outros profissionais. Antes de delegar a um profissional novo responsabilidades eventuais sobre algum paciente, temos de ter a consciência que podemos fazer isto com certeza absoluta, e nada duvidoso será executado por ele. Geralmente a admissão a um nosocômio era feito por um profissional já habilitado desta unidade, e que atuaria como um “padrinho”, observando-o e o orientando dentro das rotinas, para evitar quaisquer tipo de atritos, com quem quer que fosse.
Era uma fase difícil, pois todo o tato era pouco. Há a necessidade de boa dose de humildade, para não ferir as sensibilidades de outros profissionais, e ao mesmo tempo demonstrar certeza e firmeza de suas condutas. A dedicação e o desdobramento em relação ao paciente também é outro ponto marcante. Somente assim conseguirá ser integrado à comunidade e reconhecido como um deles.
Aceito ao meio que atua, pequenos atritos ainda poderão se desenvolver. A experiência mostra muitas vezes que a evolução de uma doença é inexorável, podendo ser protelada mesmo em seus estádios terminais, mas nunca evitado.
Este problema não é muito bem assimilado durante sua formação. Agora é a fase em que qualquer fracasso é crucial. Começa ele a atuar com todas suas forças, seu otimismo e energia na batalha contra o destino final de qualquer ser vivo. E esta luta pode tornar-se uma verdadeira obstinação. É o retorno da fase do “super-homem”.
A vivência constante desta essência filosófica poderá torná-lo um profissional em que só concorde com condutas extremas em casos quase que finais. Mesmo enfrentando riscos, algo faz com que ele venha a optar por condutas radicais quando o risco de morte seja muito grande.
Estas condutas discutíveis e/ou tendenciosas poderão leva-lo a procedimentos dúbios onde a persistência e obstinação em determinado objetivo pode chegar causar uma verdadeira “cegueira” à lógica, e faze-lo optar por condutas que possam ser consideradas temerárias à integridade do doente.
Se dentro destes procedimentos são obtidos sucessos, isto poderá induzir ao desenvolvimento de um certo “absolutismo” de condutas, onde a luta contra a doença se torna superior ao conforto e até mesmo à maior segurança do paciente.
Neste momento temos o médico “absolutista”, onde apenas seus atos profissionais são “reais, verdadeiros, irrefutáveis e incontestáveis”, e a opinião de colegas, psicologicamente relegadas a um segundo plano.
Paralelamente a isto, temos que o continuo assumir pelas plenas responsabilidades profissionais associados com os sucessivos sucessos, acabam por retro alimentar o processo, gerando estado de total, plena e indiscutível segurança e suficiência nas condutas, gerando um processo quase similar de megalomania.
Este estado pode ser passageiro ou perdurar por anos e anos. Intimamente nunca aceitaremos a derrota e perderemos a esperança que acabaremos por vencer o mal, que se hoje ainda não temos um meio digno de enfrentar algum problema, o amanhã irá sorrir para nós, oferecendo outras opções. E, dentro deste raciocínio de conto de fadas, nossas expectativas continuarão a fluir...


A Maturidade e o Ocaso
Mas, em determinado momento, o sonho termina abruptamente. É como um balde de água fria lançado violentamente sobre nós. Nossas esperanças simplesmente se desmoronam, nossos sonhos esvaem-se totalmente.
Chega o momento que estamos cansados de sermos vencidos pela doença,                                                                                                                                                                                                                                 de viver com o sofrimento alheio. Estamos enfadados da dor de outrem, do pensamento mágico que somos invencíveis, de manter uma “farsa” de estarmos sempre dando uma esperança que intuitivamente sabemos transitória, de acalentarmos uma ilusão no paciente e seus familiares. Sem dúvida, sabemos que a evolução de uma doença é inexorável, e mais ou menos tempo, os fatos escaparão de nosso controle, e finalmente começamos a reconhecer que muitas vezes não passamos de meros intermediários, de meros “sapateiros remendões” entre nosso ambicionado fim e a evolução inexorável da doença.
Há um momento em nossa existência em que indagamos a nós mesmos de até onde nossos atos são válidos, o nosso contínuo lutar e nosso eterno ser derrotado pelo implacável desenrolar e fim inevitável da moléstia.
Há um momento em que somos obrigados a avaliar se, dentro das condutas intermediárias que tomamos durante um tratamento, se todas estas passagens foram válidas, se os custos envolvidos e o sofrimento que fizemos os pacientes e seus familiares passarem foram realmente válidos para postergar um fim inevitável.
Há um momento onde deveremos então considerar que onde é mais importante destinarmos verbas, se para um paciente gravíssimo, quase sempre fadado ir ao óbito, ou de outro lado, utilizar estas verbas para alimentação e saneamento básico voltado à infância, o que provavelmente evitaria no futuro uma série de doenças, doentes e óbitos? Não que os primeiros não mereçam o tratamento... Ainda bem que não cabe a nós, profissionais de saúde atuantes, termos de fazer esta opção. Nosso compromisso é com o paciente que assumimos a responsabilidade.
Quando falamos em tratar um paciente, omitimos às vezes que o tratamento proposto é paliativo, e que dificilmente evitaremos o inexorável. Somos então aplaudidos por um sucesso transitório, e dentro de uma escala de valores, não estamos oferecendo ao doente nada mais do que ilusão, e ilusoriamente vangloriamos nosso dúbio sucesso.
Ainda me fere o sentimento de impotência, revolta e outros, de dois casos mais marcantes em minha vida. O primeiro refere-se a um jovem paciente com trombose arterial de todo o intestino delgado que foi submetido à enterectomia (ressecção total de intestino delgado). Depois de uma luta que se prolongou durante mais de um ano, conseguimos dar alta hospitalar a este doente, mas com a condição que deveria tomar um copo de suplemento dietético cada duas horas (era sua condição básica de sobrevivência). Conseguimos inclusive fazer com que este suplemento fosse fornecido gratuitamente à ele.
Passados alguns meses, retornou ele ao hospital totalmente desidratado, caquético, justificando que “não mais desejava viver, pois se constituía em um peso exagerado (tanto monetário como social) para sua família. Que a sua morte propiciaria alguns benefícios, como sua esposa poderia ter mais liberdade em conseguir um emprego e sustentar muito mais adequadamente a ela e seu filho, visto que ele não conseguia exercer nenhuma atividade e a aposentadoria que recebia era insuficiente, que ela poderia ter uma vida mais normal, inclusive casando-se novamente. Que não haveria mais necessidade de ele ficar mendigando alimentação, que não mais suportava tomar estes suplementos, etc”. E realmente, por vontade própria, evoluiu para o óbito.
 Outro caso foi um jovem que teve trombose arterial na perna, mas conseguimos manter a extremidade. O grande problema que é que como consequência tinha incapacidade para andar além de umas dezenas de metros. Todo o sucesso deste caso foi frustrado quando veio até nós e solicitou amputação da extremidade. A justificativa é que do modo que estava era impossível trabalhar, e portanto sobreviver adequadamente. Alegava que com a amputação, poderia utilizar uma prótese mecânica e levar vida normal. Negamo-nos a executar o procedimento, mas segundo comentários, um outro profissional concretizou seu desejo.
Estes dois casos nos levam a questionar se a conduta profissional tomada foi realmente a mais adequada. Pelo menos o era quando foi executada, mas todo o trabalho desenvolvido foi crucialmente destruído pelo desejo e outras metas dos pacientes.
Temos estes dois casos como o exemplo vívido do desejo do paciente sobrepujando a indicação e o sucesso da atividade médica.
Agiram conforme seu desejo maior, e não cabe a mim recrimina-los por suas opções, somente a frustração de vermos nossos sucessos tão vilmente tolhidos.
Com isto mais uma vez vemos nossa colocação inicial endossada, pois apesar de todos os esforços feitos para se evitar uma situação final, quando a conseguimos, o destino friamente riu de nós, e acabou por completar sua meta inquestionável...


Conclusão
Hoje estamos usufruindo do devido respeito e repouso que merecemos depois de quase cinquenta anos vivendo com doenças, doentes e a noiva da morte. Atingimos muitas satisfações, e tivemos algumas decepções. Julgamos as metas propostas dentro da juventude como plenamente realizadas. A vivência em companhia da vida e morte nos faz crescermos. Ajuda-nos a entender o começo, meio e fim das coisas. Ajuda a aceitar o sucesso e a derrota, a alegria e a tristeza. Nos ensina a “andar” com o paciente terminal, tratá-lo, consolá-lo e prepará-lo para a morte. Obriga-nos a ter respeito e desprendimento pelos outros. Obriga-nos a sérios dilemas de consciência. Gera e cria novos valores morais e impulsiona a sociedade como um todo, inclusive a eventualmente alterar suas normas e leis. Inclusive, nos obriga algumas vezes a considerar em nosso âmago a malévola e inaceitável sensação de Dr. Jekill e Dr. Hyde.
Apesar do grande esforço desprendido no sentido de não interferimos na vida particular de nossos pacientes, isto acaba ocorrendo, seja pela intimidade da vivência, seja pela habitual solicitação de conselhos. Além da especialidade exercida, somos muitas vezes solicitados a opinar sobre situações e como equacionar as soluções.
Tenho plena realização de minha vida dentro dos parâmetros do Juramento de Hipócrates, que sempre respeitei. Respaldei-me nas minhas decisões, sempre nos valores da honra e do respeito a mim mesmo e ao meu próximo. Nunca exerci o mercantilismo, e sempre o combati com veemência. Fiz sempre o que poderia fazer de melhor ao paciente. O que fiz, fiz pela verdade e pelo melhor de cada um e pelo todo. Algumas vezes não fui bem entendido em minhas metas e objetivos. Tive meus grandes sonhos e grandes decepções.
Aprendi que quanto mais pessoas temos ao lado, maior nossa possibilidade de sermos vilmente traídos. Conheci muitas pessoas vestidas com pele de cordeiro. Aprendi que os galanteios feitos, geralmente nada mais são senão que “cantos das sereias”, e dos Judas que se aproximam de nós. E muitas vezes se vendem por muito menos de 30 moedas...
Mas apesar disto, tive ótimos e verdadeiros amigos que permanecem guardados com todo o carinho em meu coração e minha mente. Amigos são para sempre...
Muitas vezes aprendi que a solidão é melhor que o risco de sermos traídos. O retraimento é menos cooperativista e tem sabor muito menos amargo. Permite-nos manter sempre com a cabeça erguida. Nos mantem a altivez e a honra...
Agora que percorri meu caminho, tenho o direito de sentar-me à beira do rio, na sombra de frondosa árvore, e ver a águas passarem ouvindo suas canções...

Apêndice
Juramento de Hipócrates
"Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue:
Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.
A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. 
            Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
             Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
             Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
              Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, que eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
             Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça."


Código de Hamurabi (Babilônia antiga: 1750 A.C.)
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215º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos.
216º - Se é um liberto, ele receberá cinco siclos.
217º - Se é o escravo de alguém, o seu proprietário deverá dar ao médico dois siclos. (A diferença social também era compensada com uma lei que tornava os serviços prestados aos pobres mais baratos.) 
218º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos. (Erro médico que levasse a deficiência de uma pessoa, o médico poderia ser punido com a amputação das mãos, impossibilitando-o de exercer o ofício.)
219º - Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo.
220º - Se ele abriu a sua incisão com a lanceta de bronze o olho fica perdido, deverá pagar metade de seu preço.
221º - Se um médico restabelece o osso quebrado de alguém ou as partes moles doentes, o doente deverá dar ao médico cinco siclos.
222º - Se é um liberto, deverá dar três siclos.
223º - Se é um escravo, o dono deverá dar ao médico dois siclos.
224º - Se o médico dos bois e dos burros trata um boi ou um burro de uma grave ferida e o animal se restabelece, o proprietário deverá dar ao médico, em pagamento, um sexto de siclo.
225º - Se ele trata um boi ou burro de uma grave ferida e o mata, deverá dar um quarto de seu preço ao proprietário.
226º - Se o tosquiador, sem ciência do senhor de um escravo, lhe imprime a marca de escravo inalienável, dever-se-á cortar as mãos desse tosquiador.

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Unidade de peso no antigo Oriente. Antiga moeda dos hebreus, de prata, cujo peso equivalia a seis gramas

O shekel,1 também grafado sheqel ou shequel (em hebraico: שקל; plural: shekels, sheqels, sheqalim, em hebraico: שקלים‎), ou siclo1 em português, refere-se a uma das mais antigas unidades de peso, utilizada posteriormente como nome da moeda corrente do povo israelita. A primeira utilização é da Mesopotâmia, cerca de 3000 a.C. Inicialmente, ela pode ter se referido a um peso de cevada (a primeira sílaba "she" era o acadiano para cevada). Este shekel possuía cerca de 180 grãos (11,4 gramas).

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