quarta-feira, 21 de abril de 2010

VISLUMBRES DA INFÂNCIA: 3

A Espingarda e a Vocação Médica



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Antigamente, quando morávamos em área rural, nossa formação - em contato contínuo com a natureza - tinha características peculiares. Acordava-se cedo, até mesmo antes do raiar do sol. A primeira coisa a ser feita era ligar o rádio, pois assim ouvíamos algumas músicas, e também recados que eram enviados da cidade para nós. É bom rememorar que tneste tempo não tínhamos energia elétrica. Quem fornecia energia para o rádio era a velha bateria (acumulador) de carros.


Aí o fogão a lenha era aceso, para preparo da primeira refeição. Após o café, ajudava-se a revolver a palha dos colchões enquanto outra pessoa ia estendendo as camas. Cuidava-se dos animais, ao cair da tarde saía-se em busca dos ovos de galinha e de gravetos secos para acender o fogão a lenha na madrugada seguinte. Sacrificava-se esporadicamente algum animal para poder dele fazer a refeição. Moía-se a carne de porco para fazer lingüiças, que ficavam semanas secando.



Trocavam-se os ferros de brasas esfriando com outro de rubras para passar roupas. Desde criança, incutia-se o conceito de responsabilidade e de divisão de trabalho. Para podermos exigir no futuro um serviço bem feito, tínhamos desde a infância a saber como fazê-lo bem feito. E ainda sobrava tempo para subir nas árvores e deliciar-se com as frutas, bem como correr no final da tarde para o rio tomar banho com os outras pessoas e nadar. E não se podia esquecer de lavar os pés antes de deitar.


Ir à roça de feijão ou de algodão eram coisas também proibidas, quando meninos. O risco de ser picado por cobras era muito grande. Também tínhamos de olhar com cuidado as árvores, pois muitas vezes aí também estavam as víboras. Por diversas vezes na infância colhi flores para enfeitar a urna de alguém que havia partido em virtude disto. Tínhamos de ficar sempre atentos a qualquer coisa diferente. Se estivéssemos de cavalo, o perigo era pisar em algum enxu de vespas. E neste caso a ordem era pular do animal e ficar deitado quieto no chão até que o enxame fosse embora. Levava-se menos picadas. A realidade é que a mínima distração poderia causar a morte. Poderia não haver uma segunda oportunidade. Desde a infância era imprimido de modo indelével o conceito do perigo e da morte. Somente assim é que teríamos mais possibilidades de sobreviver.


À noite, o lampião de querosene, espraiando sua luz amarelada, criando sombras fantasmagóricas, iluminava o jogo de baralho, enquanto a sanfona (ou harmônica) arrancava seus sons à distância. Outras vezes sua luz tremulante, se fazia presente para podermos ler algum livro, ou era quando meu pai sentava-se em sua mesa e fazia a escrituração diária. Mas habitualmente dormia-se cedo. A eletricidade, gerada a custa de baterias, era somente utilizada para o rádio. No restante da noite, quebrando a escuridão negra tal breu, uma pequena lamparina a óleo se fazia presente, rasgando o negrume noturno.





Meu pai se faz ainda presente em minhas recordações quando andávamos pelo sítio, ou à noite, contava histórias ou fazia com as mãos as mais diversas sombras serem projetadas na parede do quarto. Eram quando víamos cabeça de cachorros, pássaros, rostos humanos e as mais diferentes formas imagináveis tomarem vida na parede caiada. Outras vezes sentava-se nos troncos de madeira no terreiro e ficava-se jogando conversa fora com os outros moradores do sítio. Dou graças de ter tido esta experiência fantástica que meus pais possibilitaram.

Eram valores bem diferentes que existiam na área urbana. Agora aqui se andava de carrinho de rolimã, jogava-se futebol na rua, divertíamos com brinquedos mais sofisticados, tínhamos que colocar calça azul e camisa branca para ir à escola. Tínhamos de preparar as lições, estudar... estudar... estudar...
Mas tínhamos nossas molecagens. E a mais gostosa, que vem à mente, era colocar um prego de pé entre os paralelepípedos da rua, e ficar apostando que carro iria passar em cima dele e ficar com o pneu furado... tudo ia bem até que nossos pais descobriam a reinação, e acabávamos com algumas chineladas em nosso traseiro.
Mas chegavam as férias. E corríamos de novo para a área rural. No sítio havia lugares que éramos proibidos de irmos a sós. A água era um grande atrativo, mas tínhamos de ter sempre alguém conosco. E para não esquecermos, sabíamos que esta era a lei. Primeiro era o aviso, depois... a cinta bem aplicada na bunda era a certeza absoluta de nossos pais que a lição não seria mais esquecida.
Foi assim que descobri que era proibido brincar no paiol de milho. Também era proibido ir onde se guardava algodão... mas era tão gostoso ficar pulando nele... (onde se podia até vir a morrer sufocado se afundássemos demais).

Havia o quarto de ferramentas. Também era proibido entrar nele. Era ali que ficavam as ferramentas de corte, bem como os venenos utilizados. Geralmente ficavam muito bem fechados.
Era proibido brincar com a lanterna. Ela era reservada para iluminar à noite algum animal selvagem que atacasse as galinhas ou outras criações. E também havia a terrível espingarda, pendurada atrás da porta, coisa sempre cobiçada de se ter às mãos. Ela era quem liquidava estes intrusos noturnos. E era o maior atrativo dentro da casa grande e a peça que mais nos enamorávamos para ter em nossas mãos.
Tinha eu meus seis ou sete anos, quando meu pai resolveu me ensinar a atirar e algumas coisas a mais. Um belo dia pegou a cartucheira, explicou como funcionava. Depois orientou a firmá-la com toda a força contra meu ombro, mirar no animal e puxar o gatilho.
Assim o fiz. O tiro foi de um lado, e eu caí de costas com a violência da explosão. Com o ombro dolorido, levantei-me e fui ver minha primeira caça. Um pobre passarinho estava caído no chão, debatendo-se entre a vida e a morte, piando sem parar. E eu não podia entender comigo mesmo o porque que havia feito aquilo... fiquei vendo a agonia do pobre pássaro, até que cessaram seus movimentos e calou-se seu trino. Olhava para meu pai ao meu lado pedindo ajuda, e ele quieto, sem falar uma única palavra ou fazer um único gesto. Foi uma ótima lição de ele me deu.
Este foi meu primeiro e último tiro contra alguma coisa viva que dei em minha vida. E foi também, seguramente o que criou uma verdadeira obsessão, apesar de ter alta inclinação por matemática e física, a dedicar minha existência a cuidar de doentes. Foi assim que optei por ser médico.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

BRASÍLIA: Vislumbres de Infância 02


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Há coisas interessantes que ocorrem durante nossa existência. Há fatos corriqueiramente repetitivos e os habituais, que são a grande maioria das ocorrências. Mas também há os raros, como ver ser fundada uma cidade, e ainda raríssimo, como ver uma capital de um país ser mudada, como o foi a do nosso país para o vasto sertão central do Brasil.
Independente de seu contexto político bem como de todas as iniciativas que ocorreram para sua existência, bem como conseqüências de sua nova localização e atuação, a realidade é que pouquíssimas gerações (e pessoas) tiveram a oportunidade de ver um fato desta magnitude acontecer.




E neste aspecto, seguramente a fundação de Brasília é única. A grandeza inerente de ver uma nova cidade desabrochando em pleno sertão, a segunda mudança de capital ocorrida no Brasil, é sensação única e inexplicável a não ser para quem teve esta oportunidade.



Nos tempos que a Capital Federal se situava em Salvador, ocorreram invasões por estrangeiros (ingleses e holandeses).

A idéia de sua mudança para a área central (1761) já era defendida pelo Marquês de Pombal (1699-1782) e pela Inconfidência Mineira (1789). Em 1823 José Bonifácio (1763-1838) defendia a transferência da Capital para uma área central. Em 1891 a Assembléia Constituinte aprovou a mudança de Capital, que foi demarcada por Luis Crulz (1848-1908), Diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro. Mas, as tormentas governamentais que ocorreram nos anos vindouros fizeram com que a idéia permanecesse adormecida.




Ela foi despertada novamente com a entrada de Juscelino Kubtscheck de Oliveira na Presidência da República. E a coroação da idéia ocorreu precisamente em 21 de abril de 1960, com a inauguração de Brasília.



Retornando a idéia inicial, há oportunidades únicas da vida de algumas pessoas. E minha família não poderia deixar de testemunhar tal fato. Independentemente das dificuldades a se enfrentar, seríamos testemunhas da fundação de Brasília.
Minha mãe Antonieta, minha irmã Maria Ruth, meu irmão Rossini com sua esposa Neyde e eu nos mobilizamos para esta viagem.


Saímos de Piracicaba três dias antes da inauguração, indo para Brasília em um Jeep. Nas cidades dormíamos em hotéis, e quando estes não existiam, repousávamos como os outros, na beira das estradas. Enfrentamos o asfalto, as estradas de terra e chegamos um dia antes da inauguração. Em Brasília não havia restaurantes onde se fazer as refeições. A alimentação era distribuída pelo Exército, em caixas de papelão, com dois lanches, dois ovos cozidos, uma fruta e um pequeno pacote de sal em seu interior. Não faltava ampla distribuição de leite e água. Também estava lá o sino que badalou anunciando a morte de Tiradentes (1746-1792), agora anunciando com suas badaladas a nova Capital Federal. E assim fomos testemunhas junto com candangos e outras pessoas de ver surgir uma nova cidade e Capital do Brasil.



E de toda esta experiência, algumas palavras ficaram indelevelmente marcadas em nossas mentes:




"Deste Planalto Central, desta solidão em que breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com uma fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino".
Juscelino Kubistchek


Os maiores agradecimentos à família, que nunca deixou de ter o espírito de conhecimento no sangue, permitindo que em minha infância conhecesse o Brasil.
E, de todas as recordações, a mais palpável é um pedaço de mármore arrendodado, branco, onde, com a letra de minha mãe, esta escrito: Brasília, 21 4 1961.