sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

MILAGRE DO NATAL

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Quando se aproximam as festas natalícias, fatos há muito tempo passados começam fluir à mente com mais intensidade e tomam formas mais consistentes. Rememora-me então, ainda quando crianças, com não mais de seis ou sete anos, sentados no tapete, montando o presépio ou enfeitando a árvore, ouvíamos nossos avós, em suas cadeiras de balanço, lerem ou contarem suas histórias, que até hoje ressurgem à mente.













Era um momento de magia, no início da noite, as luzes a piscar, e no mistério infantil que envolvia o natal, isto era quase que sobrenatural. Agora estas recordações constituem nossa herança cultural, transmitida por aqueles que há muito se foram. E entre as muitas que ouvíamos, esta era uma delas, que ousei chamar de...



































Milagre de Natal

(in memorian
Antonieta Renna Busatto)










Há muito e muito tempo, havia uma menina, com seus nove ou dez anos, de olhos azuis profundos. A vida não era feliz com ela, andava envolta em seus andrajos, quase nunca se banhava, a fome geralmente estava a devorar suas entranhas. Comia o que lhe davam pelas casas, dormia onde pudesse abrigar-se dos meninos, da chuva ou do frio. E esta situação perdurava por anos.







Agora, em plena véspera de natal, mais uma vez submersa em gélida ventania, caminhava buscando lugar seguro para abrigar-se do mal maior que ainda poderia lhe acontecer. Em suas vestes esfarrapadas existem mais buracos que tecidos, que mal cobrem o trêmulo corpo por onde o frio insiste em penetrar. Segura entre os enrijecidos dedos o seu grande prêmio do dia, uma caixa de fósforos com alguns palitos. Quem a havia dado insistia que os palitos eram mágicos, e somente deveriam ser acesos durante a noite, para que ocorresse um milagre.











Andando pela fria cidade, todas as casas fechadas, onde luzes fluíam de seu interior, mostrando a alegria e felicidade nos lares. E ela sozinha, se sentindo perdida naquele espaço que tudo lhe negava. E não lhe abandonavam a mente as palavras daquela velhinha, coberta de rugas, mas com uma pele tão jovial. “Só os acenda durante a noite, para que ocorra o milagre...”


De uma mansão à frente, com suas ostentosas janelas e portas, todas ornadas com enfeites das mais variadas cores e formas, chega o som de músicas natalinas, o odor dos alimentos que jamais saborearia... no seu interior conseguia vislumbrar uma árvore de natal de tamanho gigantesco, resplandecente em suas luzes e enfeites. Aos seus pés, caixas e mais caixas com presentes. Crianças corriam em todos os quartos que podia divisar fazendo algazarras, enquanto os adultos conversavam em suas confortáveis poltronas. Mais uma vez a saudade agitou seu pequeno corpo... As doces lembranças de um tempo há muito ido... A imagem de seu pai e mãe... E o carinho que tinham com ela.










Mas para ela, enjeitada da sociedade e de todos, não havia aonde ir a não ser abrigar-se em um velho celeiro atrás do palacete. Temia pedir abrigo e vir a ser enxotada. Lentamente aproximou-se da construção. Encontra a porta, que range levemente quando é empurrada e se abre.










Mal consegue ver o que há a sua volta. Uma charrete... Instrumentos de cuidar da terra... Alimentos para animais. Fecha a porta e procura por um lugar onde possa se sentir mais confortável. Em um canto, pendurada na parede, uma sela, e caído ao chão, observa o baixeiro e alguns panos velhos, usados para encilhar animais. Deita-se sobre eles e com outro se cobre. Parece que o vento frio ficou um pouco além, e não cortava tanto.









Nas mãos, onde ainda permanecia firmemente seguro o misterioso presente, vinha à lembrança das palavras murmuradas de quem havia dado o mimo: “São fósforos mágicos. Deixe-os para acender para uma nova vida, onde haja esperanças de uma existência melhor, com alegrias incomensuráveis. Terá que acendê-los uma após o outro, e quando fizer isto, alguma coisa maravilhosa acontecerá...”


















Nada mais havia de esperar daquela noite fria e gélida, a não ser um verdadeiro milagre. Com os borborigmos na barriga, a esquecer a fome, o frio e os dedos enrijecidos por êle, com dificuldades abriu a caixa, tomando cuidado para não perder os poucos palitos.















Tomou de um deles e o acendeu, fazendo que pequeno clarão surgisse. O frio afastou-se mais um pouco, dando lugar a uma brisa morna que a envolveu. E dentro deste círculo luminoso mágico de que a envolvia meio aquecida, vislumbrou sua mãe, que há muito tempo não via. Estava um pouco longe, mas docemente a chamava com as mãos, o rosto risonho, fazendo prenúncios de uma existência melhor. Não podia acreditar no que via. Permaneceu extasiada, dentro daquele feitiço, que se recusava a acreditar. Tão concentrada estava, esqueceu até o fósforo que ao apagar-se, queimando seus pequenos dedos, fez com que as cenas desaparecessem.




Dentro da mansão, ainda chegavam os ruídos da festa. Gritos de alegria, exacerbações de surpresas, odor de alimentos. Mas agora não incomodavam tanto. Estavam muito mais distantes, e neste momento eram quase inexistentes. Aquele celeiro realmente estava impregnado de certa magia. Ainda estava a se beliscar, mal acreditando no que havia visto. Sua mãe, com suas belas roupas ainda quando era criança... As saudades invadiram seu coração e uma lágrima rolou de seus olhos. De dor, tristeza, ausência, todas incomensuráveis. Sentiu novamente o frio voltar a envolvê-la. Mas do lado que havia visto sua mãe, parece que havia um pequeno calor a mais. Pegou os trapos com que se envolvera e mudou de lugar. Foi para aquele canto, ele parecia mais mágico. Balançou a caixa de fósforos, havia mais alguns palitos. Com todo o cuidado acendeu o segundo.





O frio foi espantado de seu lado. Chegara mesmo a sentir algum pequeno calor. O tremor que envolvia seus dedos e corpo praticamente desapareceram. Agora podia ver sua mãe com mais detalhes. O rosto risonho... Face corada... Mãos estendidas... Pequenas rugas que talhavam suas mãos... Chegou mesmo até a ouvi-la sussurrando seu nome, palavras que há muito tempo não ouvia... Promessas de viver sem sofrimentos... Um futuro com uma vida melhor... A satisfação de ter sempre por perto sua genitora... E de súbito a brasa do fósforo atingiu seus dedos pela segunda vez... O pequeno pedaço que lhe ainda segurava voou para longe com o movimento involuntário da queimadura, e dirigindo a parte dolorida aos lábios ressequidos, fez com que a dor tornasse mais branda.

Estava assustada. Estes fatos nunca haviam ocorrido com ela. Misturava no seu interior uma sensação de dúvidas com angústia. Não queria, mas as lágrimas rolavam de seus olhos. As doces recordações da mãe e do pai... O pequeno cachorro que enchia o espaço da casa onde morara... A felicidade em ter um lar... O desespero quando os dois se foram... Como fora difícil sepultá-los... Um logo após o outro... Os anos difíceis sobrevivendo na rua...




Novamente balançou a caixa. Havia um último palito. Tinha que acendê-lo. Necessitava uma vez mais saber o fim da história. Queria sentir mais uma vez a cálida presença da mãe. E havia o receio que ele negasse fogo... Era sua derradeira chance.



Com cuidado e receio riscou o último palito. Uma primeira vez apenas algumas fagulhas apareceram e morreram na escuridão. Uma segunda vez... E nada a acontecer. Estava assustada. Havia antevisto tantas coisas belas e felizes. E agora se via ante o risco de perder tudo. Riscou o fósforo uma terceira vez, rezando para nada acontecer, para ter sucesso. Eis que ele explode em luz. Sua mãe agora já estava ao seu lado, alegre e brincalhona como sempre fora, e ela recordava... Tudo ao seu redor havia mudado. Quase que não podia acreditar no que via... O interior do galpão sumira, e agora em seu lugar existia um campo verdejante, pontilhado em todas as cores... O perfume que dele exalava era coisa maravilhosa. Sua mãe vestia belos trajes, sentada entre as miríades de flores. E quando olhou a si própria, viu que suas vestes não eram mais as mesmas. Os farrapos haviam desaparecido, dando lugar a belo vestido. A fome não a incomodava mais. Havia saciada. Assim também foi com o frio e todos os outros receios. Era como esta vivesse de volta ao lar novamente. E sentiu a felicidade explodir no seu interior como há muito tempo não ocorria.





Deitou-se ao colo da mãe. Os passarinhos cantavam, o sol resplandecia... Sua mãe acariciava seus cabelos, e finalmente a menina fez algo que há muito tempo não fazia: sorriu um riso espontâneo, que realmente vinha do âmago do coração.





A mãe também sorriu. As duas se levantaram, e de mãos dadas começaram a andar. Caminharam... e suas imagens perderam-se no infinito. Realmente, desta vez a menina nem chegou a ver ou sentir quando o fósforo apagou-se entre seus dedos.




Pela manhã, os serviçais, ao abrirem o celeiro, encontraram o corpo da menina, todo encolhido, alquebrado pela fome e doença. Mas não conseguiram entender uma coisa... O porquê dos olhos abertos, voltados para a eternidade, e mais ainda, o porquê do sorriso de total alegria e satisfação que envolvia toda aquela face esquálida e lânguida.

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