Casa de Idosos[1]
Havia nas cercanias de
Piracicaba na primeira metade do século XX uma senhora que, por motivos
ignorados, não havia se casado. E os anos passando, a idade aumentando, a
solidão crescendo, e sem uma viva alma que rompesse seu isolamento.
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E sua vida resumia-se a uma
rotina infindável de trabalhos domésticos junto aos pais. Mas um dia chegou o
momento dela sair deste ostracismo diário, e mergulhar no mundo existencial.
Encontrara finalmente ela a quem pudesse se devotar, dar e doar de si,
constituindo um novo lar, inteiramente seu.
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A família encarou com olhares
desconfiados à modificação dia a dia da balzaquiana. Não podiam acreditar que
ela, passados de seus cinquenta e tantos anos, viesse a se apaixonar por
alguém, e que a recíproca fosse real.
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E foi chegado o momento em que
todos, curiosos, não puderam mais ignorar os arroubos, e resolveram conhecer o
pretendente. E foi uma surpresa e um choque para todos. Era moreno...
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Eles, com todos os resquícios
dos costumes herdados dos ancestrais do século passado, descendentes de puros
caucasianos, brancos, terem uma pessoa de outra raça dentro do lar. Costumes e
hábitos diferentes... Não era aceitável... E seu serviço... Um simples
trabalhador, sem profissão estabilizada, sem renda fixa, ganhando conforme
produzisse... Isto constituía à óptica deles uma ofensa não só aos presentes
bem como a todos os ancestrais. Teria ela duas opções oferecidas pelos seus
genitores: ou deixava seu amor ou seria desterrada da família. Repetia-se a
repugnante herança preconceitual, assim também como o era a perda da
virgindade, o lavar a honra com sangue, o assassinato consensual. Não se
tolerava ou aceitava um casamento multirracial. A todos estes tipos de fatos
bania-se com agressões das mais diversas, o degredo familiar, a prisão em algum
convento senão quando até mesmo com a morte.
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Mas, não cedeu ela um milímetro que fosse. Não abriria agora mão de sua felicidade, mesmo que tardia. E assim o
fez.
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O casamento foi preparado
rapidamente pelos nubentes. Ela tinha que estar casada antes que fosse expulsa
de dentro de casa.
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A situação foi discutida com o
cônjuge. Era premente tomar alguma decisão. E assim, como na calada da noite,
foi marcado o casamento civil e religioso. Rapidamente. Não houve convites, não
houve padrinhos, não houve nem convidados nem festa. Não houve nem a presença
da família, amigos ou amigas. Apenas uma cerimônia rápida, onde o marido houve
por bem providenciar o mínimo necessário para se evitar um ridículo maior. Mesmo
na igreja, o padre imaginando a situação e sentindo-se como conivente em erro e
pecado frente aos valores da época, houve por bem fazer da cerimônia algo
extremamente rápido. E assim, como tinham entrado pela porta lateral, por aí
também saíram, pois a frontal estava trancada. Na igreja, sem ornamentos,
mergulhada em penumbra e silêncio quase sepulcral, umas poucas beatas assistiam
a cerimônia com o horror estampado nas faces, não parando de benzer-se, da
união feita à surdina e que se constituiria farto material para seus
comentários maledicentes por bom tempo.
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Tomando de seus parcos bens,
algumas poucas roupas, dois pares de sapato, um chinelo de sola quase furada,
sequer com um tostão de dote e carregando em suas costas a maldição do pai,
irmãos e todo o resto da família, lá se foi ela, feliz com o marido, partindo
para uma vida nova, onde reinasse carinho, entendimento e compreensão entre os
dois, livre de implicâncias e prejulgamentos.
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Morando na casa dos pais dele,
em pequeno quarto no quintal, aí construíram seu nicho existencial. Ele,
continuando a exercer sua profissão; ela, degredada da família, mas tendo plena
aceitação no novo lar que a adotara e exercendo atividades domésticas.
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Devido à idade dos cônjuges, o
filho que ambos ambicionavam nunca veio. E ficou o vazio da continuidade, do
choro, das reinações de uma criança, do porvir de um herdeiro.
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O tempo corria, e o mesmo com
os pais de seu marido. E houve o tempo em que o alfanje da morte tocou a ambos.
Primeiro ao sogro, e não passado muito tempo, à genitora de seu marido.
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A pequena casa onde viviam teve
que ser vendida para se repartir os parcos bens. E foram obrigados eles,
amargurados, a deixar aquele quarto de quintal, fruto do trabalho dos dois, e
irem morar em pequena casa de aluguel.
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Continuavam a ter uma vida
frugal e satisfatória, apoiando-se, amando-se, não se deixando abater pelas
intempéries da vida. Parecia que nada, absolutamente nada poderia romper aquele
ciclo de bonança. Mas estavam eles plenamente enganados. Mais uma vez o destino
os trairia, reservando aos dois a continuidade das más perspectivas, e do
carrear das tragédias.
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Houve o dia que ele acordou
indisposto. Negou-se a levantar para o trabalho. A dor de cabeça era
lancinante. Embebeu um lenço em álcool e água aplicando-o sobre a testa, com
resultado infrutífero. Tomou as medicações analgésicas habituais, mas sem
nenhum resultado. Tinha que ir ao médico ver o que estava acontecendo, resolver
o problema de saúde. Levantou-se para se vestir. O esforço foi a gota d’água. A dor piorou. Como em um passe de mágica, mil
estrelas fulgurantes explodiram à sua frente. Um zumbido brutal se instalou em
seus ouvidos. E tudo isto foi num crescendo, cada vez maior. Já não sabia se
estava em pé ou deitado. Nem onde estava, desconhecia a esposa ao seu lado, e
finalmente nem mais sabia quem era. Toda sua percepção estava alterada, era
como mil tintas a escorrerem juntas, produzindo os mais diferentes matizes. Assim
como tudo havia começado, de súbito tudo se dissipou, a dor, o desespero daquelas
sensações desconhecidas. Sumiram a luz, os sons e a consciência. Tudo
desapareceu, e com eles a própria vida.
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A esposa assistia a tudo,
impotente. Viu o marido reclamando. Viu quando ele sentou-se na cama, e sua
tentativa infrutífera de ficar em pé. Viu sua queda, quando correu para
auxiliá-lo, viu-o morto.
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Não podia acreditar no que
acontecia. Seu grande amor se esvaindo de suas mãos, e ela totalmente impotente
ao que ocorria. Era como tentar segurar a areia entre os dedos, mas ela
escorria entre os vãos, e o vento os levava, não o sabia por que e nem para
onde. Do grito lancinante em entender o ocorrido, veio o choro convulsivo. Veio
o desespero em se ver sozinha, sem o companheiro, a mão amiga que se estendesse
e a auxiliasse. Apenas o vento ululante se fazia presente, com ele largado em
seus braços.
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Não se sabe quanto tempo
permaneceu ela assim, mas foi até uma vizinha chegar, chamá-la, adentrar à
casa, e ver a cena acre e ferina de uma mulher semidesnuda, com as vestes
rasgadas, descabelada e desesperada a embalar um morto em seus braços.
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Aqueles dias foram um
pesadelo... Os fatos vinham em onda, um atrás do outro... Ela recebendo apoio
dos vizinhos... As dificuldades para o sepultamento... Fazer dívidas para pagar
o que seria duvidoso de conseguir... A total ausência de qualquer familiar
seu... A solidão e o ostracismo. Sentia-se como um cão sarnento, todos a
rejeitando, ignorada, jogada ao léu, submetendo-se a todas intempéries do
tempo.
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Não podia acreditar que Deus
lhe houvesse reservado tudo aquilo para sua existência. Todos os problemas de
sua infância, sua juventude. Não pudera frequentar a escola, a não ser nos
primeiros anos. Os namorados aproximavam-se e desapareciam quando conheciam sua
família. A conduta brutal e preconceituosa de seus pais e irmãos. A mãe, que
lhe dava nenhum apoio. O casamento amaldiçoados por todos. Mas havia os dez
anos de ternura e felicidade que havia existido com o marido, que constituíam a
chama que mantinha suavemente aquecido seu coração...
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Agora, que estava um pouco feliz,
Deus lhe mandara o anjo da morte para levar o pouco que tinha... Sentiu-se como
condenada antes mesmo de ter nascido. Imaginava qual seria ainda o tamanho da
cruz que teria de carregar... E por quanto tempo... Não conseguia entender o
motivo de sua existência e sobrevivência nesta terra.
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Se antes devotava ódio contra
quase todos, agora este se voltava também contra Deus. Se existisse, ele seria
o responsável por todas estas fatalidades existenciais. Senão seria ela nada
mais do que um joguete na mão do próprio diabo.
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Não tinha para onde ir. As
poucas economias se esvaíram. O gás e os alimentos rarearam dentro de casa.
Alguém falou em um lugar chamado de Casa dos Idosos... Uma entidade que vinha a
prover para os necessitados.
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Com uma pequena bolsa na mão,
uma mala surrada preenchida por seus parcos bens, arrastou seu alquebrado corpo
e alma até o local para mendigar auxílio e poder conseguir sobreviver.
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Entre lágrimas, rememorou os
revezes sua existência. Arranjaram uma cama para ela. Um quarto com mais
mulheres. Aí seria agora seu novo lar, longe de todos que detestava.
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Quando olhava pela janela,
via-se rodeada pelos verdes do jardim. Nas árvores centenárias os pássaros
cantavam. Lentamente, ela foi construindo novos relacionamentos com outras
albergadas. Conheceu outros homens. A vida parecia florescer de novo. A dor
lentamente foi abrandando, e a sensação que restava era de um longínquo
pesadelo. Mas tudo recrudescia ao ver uma mulher, toda de branco, que andava
por todos os locais do Asilo. Era a mulher com roupas branca e preta, com sua
pose imponente. Era a madre responsável pela administração do Lar. Quando a
via, todo o ódio que nutria por aqueles que a haviam prejudicado renasciam. E
voltava-se contra ela. Seria ela a possessão de Deus ou do diabo? Ela logo
passou a ser a encarnação da culpa viva de seus maiores pesadelos. E sentia que
o único modo de encerrar toda aquela situação seria nada mais do que elimina-la
de sua frente.
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A ideia surgiu lentamente, e
aos poucos foi crescendo dia a dia. Agora ela se transformara na fera que a
havia mutilado e desgraçado sua existência, era realmente sua inimiga, a causa
de todos seus insucessos existenciais. Teve um dia que uma visão fez entender
tudo que acontecia, ela realmente não era freira, mas um demônio menor
transfigurado dentro daquele hábito, pessoa bondosa e de fala mansa, e que
deveria ser extinta. E isto para o bem não só dela, mas de todos. O próprio Lar
se beneficiaria. Era ela a responsável pelo “chá da meia noite”, que tinha como
consequência, quase todos os dias, um idoso falecido. Era ela quem os
envenenava na calada da noite. Ela era o anjo negro transvestida naquela
inocente pessoa. E assim quase todos os dias, tinha ela uma alma para levar ao
inferno, exaltando ao querubim que ousara revoltar-se contra Deus, Lúcifer...
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Não se sabe como, mas uma arma
foi introduzida nesta Casa de Idosos, indo parar na mão desta senhora. Alguns
dizem que foi um parente dela, outros, algum conhecido muito íntimo que a
levou. Outros dizem que ela própria a comprou, com suas parcas economias... Mas
todos os fatos até aqui relatados são mera especulação, desconhecendo-se a
verdade, agora perdida no tempo.
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Finalmente, ela agora poderia
livrar o Lar do demônio, e o expulsando destas paragens, todos idosos teriam o
merecido sossego que se fazia tão necessário e que tinham direito...
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Um dia, chamou a referida
freira ao seu quarto, com uma desculpa qualquer. A porta abriu-se e a Irmã
penetrou na penumbra do quarto. A senhora perguntou quem era ao ver o vulto, e
identificando-a pela voz e imagem, enterrou a mão entre suas roupas. Quando ela
saiu do entremeio destas, surgiu junto uma garrucha. Não teve nenhuma dúvida em
estender o braço com a arma, mirar e apertar o gatilho. A explosão ocorreu, e
com o clarão que se seguiu, o projétil foi lançado, indo à busca do corpo da
irmã. Ela, ao sentir o impacto do projetil contra seu peito apercebeu de um som
irreconhecível que se irradiava de sua garganta. A surpresa foi a sensação
inicial, logo após seguida pela dor. Alguns breves segundos passaram-se antes
que associasse o estampido ao clarão e à dor. Compreendeu que tinha sido
atingida por um projétil de arma de fogo. Em altos brados, começou a gritar que
estava a morrer...
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O som do disparo também atraiu
a atenção de outras pessoas. E elas logo
correram para ver o ocorrido. Agora, com a janela aberta e o quarto devidamente
iluminado, via-se a cena com maiores detalhes. A mulher descabelada, com a
garrucha nas mãos, agora já sem munição, sentada na cama, com os olhos
esbugalhados, gritando que tinha conseguido matar o demônio, a freira em pé,
alguns metros à sua frente, com a mão recobrindo o peito, e no branco hábito,
uma mancha avermelhada que se espalhava... Mas, apesar do aparente sangramento,
tinha ela forças para manter-se de pé e continuar a vociferar do fato, e querer
encomendar a alma a Deus...
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Depois de desarmada a
agressora, as atenções voltaram-se para a madre, que ainda mantinha-se em pé,
lívida.
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Uma observação mais acurada
mostrou que o projétil realmente havia atingido o crucifixo pendente em seu
peito, bem por baixo da imagem de Jesus Cristo (que permaneceu incólume),
partindo-o em três pedaços, sendo que algumas lascas deste haviam penetrado em
sua pele, provocando um pequeno sangramento, sem nenhum perigo para sua vida.
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Esta Madre posteriormente foi
removida para prestar serviços em outro local, onde, mantendo sua fé e vocação
continuou com sua missão cristã. Foi a fundadora da atual Fundação Irmã Ruth de
Maria Camargo Sampaio-Firmacasa no bairro de Nova Aparecida, Campinas. A
pequena creche que a Irmã fundou em fevereiro de 1973 com dois dormitórios,
sala e cozinha com o nome de Berçário e Creche Casa Nossa Senhora para dar
assistência a crianças órfãs e abandonadas, filhos de presidiários ou de
pacientes psiquiátricos, atualmente atende ao respeitoso número de 160 crianças
até seis anos em período integral, e em meio período, 180 dos seis aos 14 anos
e 30 entre 15 a 24 anos.
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A outra pobre senhora, dentro
de seus quadros delirantes, cogita-se que tenha sido transferida a um hospital
psiquiátrico, desconhecendo-se seu fim.
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E disto tudo, restou para
alguns que foram testemunhas ou tiveram conhecimento do fato relatado, da
sensação da sorte exagerada da Irmã, e para outros, o milagre que se fazia
presente graças ao Dedo de Deus, interpondo o crucifixo na trajetória do
projétil e defendendo sua súdita da morte.
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[1]
Caso que alguns reputam como verídico, outros referem
como folclórico, principalmente quanto ao relatado na primeira parte do conto.
A história dos acontecimentos com a madre é verdadeira. Os fatos foram
devidamente mesclados e romanceados para dar continuidade ao escrito.
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