Há muito tempo que você se foi. Já se
passaram mais de trinta anos, e o modo que escolheu para desistir de tudo
chocou a todos com quem convivia, deixando um vazio incomensurável. Depois que nos
abandonou, ninguém mais conseguiu ocupar seu lugar da mesma forma e intensidade
no grupo, nem por um instante que fosse. Foi também o início do final de uma pequena
confraria de “elefantes” ,
que lentamente se dispersou buscando acrescentar outras realidades e valores
existenciais a fim de justificarem a essência do ser, existir e viver no dia a
dia e no porvir.
Seu nome de batismo já não mais
interessa e nem teria o mínimo significado ser rememorado. Está disperso no
infinito e perdido dentro do esquecimento da eternidade, e assim deve
permanecer. O realmente importante que deixou indelevelmente marcado a ferro e
fogo dentro de cada um de nós, foi a lembrança de além de ser uma pessoa quase como
nós, com seus altos e baixos, sempre estava preocupada em auxiliar a quem quer
que fosse. Era muito mais do que um bom samaritano. Doava-se ao limite da
própria realidade, chegando até às raias da fantasia. Onde sua pessoa se
fizesse necessária, aí estava, com um ombro amigo para aparar as lágrimas de
dor que escorriam dos olhos de seu próximo, e até mesmo, de desconhecidos.
Seu coração não tinha restrições e
preconceitos, sua bondade e compreensão estendiam-se além do limite do lógico,
sempre amparando aos necessitados. Suas mãos, com os finos e longos dedos
mágicos, mergulhavam nos cabelos revoltos destes desvalidos, seguravam sua
cabeça enquanto seus lábios sussurravam palavras taumatúrgicas ao ouvido, e do
rosto congesto pela dor e desespero, víamos o milagre da metamorfose que se
processava. Se havia lágrimas de dor e sofrimento, estas simplesmente
desapareciam. Se era o ódio que transparecia, o rosto serenava, e a paz interior
retornava. As vítimas eram levadas ao um êxtase indescritível, e a alma
torturada sucumbia ao enlevo que se seguia.
Mas algumas vezes isto ainda não era o
suficiente. O efeito do encantamento não se corporificava. Havia a necessidade
de algo mais do que o mágico toque de Midas. E então víamos, em esforço
supremo, doar o próprio corpo na relação sexual avassaladora que ambos se envolviam
de súbito, tal qual atração entre polos opostos. Em um breve instante, inesperadamente
as vestimentas simplesmente esvoaçavam em alucinada dança, como que arrancadas
dos protagonistas. Em um piscar de olhos, tínhamos dois corpos nus que se
entrelaçavam. Estivessem onde estivessem, os dois seres existentes, quase de
imediato se fundiam em apenas um. Havia uma total harmonia e simbiose, um
absorvendo ao outro em sua totalidade, fundindo-se em uma única criatura. Dos
corpos ávidos pelo encontro, apenas uma única massa permanecia. Não havia mais
duas pessoas, simplesmente um único ente, um andrógino. Impossível também de definir
se era andros, gynos ou androgynus.
Era uma nova criatura que se complementava em todos os aspectos. Era uma
explosão que simplesmente, não se entendia dentro da lógica, mas tinha de ser
observada e apreendida dentro de toda a singeleza e beleza que se expunha, sem
nenhum contexto de malícia ou moralidade, um misto da total exposição de parte
física e da imaterial, era algo transcendental que ultrapassava a cognição
humana, juntamente com o afeto e a volição.
Da união carnal gerada e consumada e
do orgasmo que acabava por explodir com os dois corpos, víamos então raiar dois
novos seres, diferentes do que existiam anteriormente, totalmente lavados de seus
pecados, de suas culpas, purificados pela benção da satisfação mútua, do entendimento
total e comunhão transcendental, expiados de qualquer manifestação de ressentimento,
ódio, dolo ou revolta, totalmente lavados no corpo e alma e isentos de qualquer
mácula. Era um total renascer, físico e espiritual.
Esta foi sua senda e saga na breve
passagem por esta existência. Mas toda a magia do processo em que a pessoa
estava mergulhada era algo que estava além de suas tênues forças humanas. O peso
que era submetido decorrente dos sucessivos auxílios o levava cada vez mais à introspecção
de seu desenvolvimento e questionamento de seu crescimento interior, de sua
pessoa como humana mortal que era, e a consequente depressão. Mas não conseguia
suspender com suas atividades. A sensação gerada de deusificação era por demais
potente e inebriante, juntamente com a satisfação do próprio bem estar que
levava ao próximo. E todo o global deste contexto se impunha inclusive acima de
sua própria existência.
Ao início foi uma insônia, frugal ao
início, e que evoluiu rapidamente para algo rebelde, em que via o nascer e o por
do sol. Sentia a crescente necessidade de um lenitivo. Escolheu o primeiro
bálsamo: o álcool. Pequenas doses ao início, que foram progressivamente
aumentando. Era o que aliviava as dores físicas que explodiam em seu corpo e
psicológicas que transbordavam de sua mente.
Mas o processo era um contínuo
crescer. A atividade tornou-se totalmente primária, fazendo com quaisquer
outros compromissos fossem relegados a um segundo plano. Assim afastou-se da
escola. E isto foi mais um incentivo para se aumentar o lenitivo. O outro foi
indubitavelmente o afastamento de sua namorada, que tinha negros presságios no
futuro e não aceitava sua imolação. Mas mesmo assim não conseguia suspender sua
atuação. Desejava colocar um freio nelas, mas a impulsão que tinha sobrepujava
inclusive o valor de sua própria integridade física e mental.
Se de um lado ocorria a sensação de
endeusamento, de outro a sua situação familiar foi deteriorando, com as
condutas que assumia. Não aceitavam seus genitores o sacrifício que observavam
aumentar dia a dia. Mas impotentes, viam o processo de sua integridade em
contínua e acelerada desagregação e degeneração.
Todas as tentativas para afastar este
sacerdócio de auxílio ao próximo foram coroadas de insucesso e total fracasso.
Mesmo reconhecendo a importância social de suas atividades, não as conseguia
coadunar com sua vida particular.
O emprego foi sua última perda. Veio
de modo explosivo. Agora nesta condição, ninguém mais queria fornecer o auxilio
que endossava suas atividades paranormais. Dentro do desespero que esporadicamente
lhe envolvia, não encontrava sua pessoa nenhum regaço para apoiar sua cabeça e
assim ser o berço que amenizaria suas dores e sofrimentos.
O primeiro lenitivo não mais produzia
os efeitos necessários, havendo necessidade do uso de substâncias mais fortes para
acalentar sua paz interior. Era o único conforto para suas ambivalências,
aflições e tempestades psicológicas.
De súbito, passou esta pessoa a verdadeira
condição de pária social. Mas, mesmo assim permaneceu presenteando aos que lhe
procuravam com o auxílio requisitado. Isto também ajudava a mitigar seus
sofrimentos.
Envelheceu de súbito. As rugas
avançaram pelo rosto e corpo. Os músculos ficaram flácidos, As pálpebras
caíram. Olheiras eram o habitual de seu rosto. As costas arquearam. As pernas
fraquejaram. Olhava-se no espelho e não mais se reconhecia. Era uma pessoa
velha. E assim juventude escapou-lhe entre os dedos em seus plenos 20 anos.
A dor e o sofrimento agora começaram
a superar sua capacidade de absorção e elaboração. Sentiu que sua capacidade transcendental
também começava a fraquejar e mostrava-se mais fraca.
Um revolver brotou do nada.
Uma detonação e um projétil explodindo
sua cabeça foi o paliativo final encontrado, que finalmente colocou fim a toda suas
angústias, dores e sofrimentos.
Se foi o esteio de muitos nas horas
difíceis, sua pessoa pouco foi compreendida e em nada recompensada. Apenas foi esquecida
e abandonada por todos aqueles a quem estendeu a mão. De todos os fatos que
ocorreram, apenas uma pequena lápide perdida na necrópole acusa sua passagem
terreal.
Portanto, não pergunte por quem
dobram os sinos. Mas, cada vez que os ouvir tinindo, recorde-se apenas de
alguém chamado de Mafla, (My Flower) se doou totalmente e nos abandonou ainda em
pleno desabrochar da existência, vítima da voracidade oriunda da própria
sociedade.
E então apenas rezem um Pai Nosso em
sua memória. É muito mais do que recebeu em toda sua existência. E é um
compromisso que todos devem ter pelo menos, pelos muitos Mafla da vida que se
doaram e se ainda se doam por uma causa que tem plena convicção de ser justa e
correta, e depois são relegados ao ostracismo da ignorância e do esquecimento.
Que Deus lhe acolha e dê a devida paz
e repouso.
Requiescant in pace.
Apêndice:
Afeto:- afinidade, ligação espiritual terna em relação a alguém ou a
algo.
Andrógino:- ver nota de rodapé.
Bálsamo:- na medicina caseira, infusão de plantas narcóticas em óleo, com
que se friccionam regiões doloridas do corpo, medicação.
Cognição:- conjunto de
unidades de saber da consciência que se baseiam em experiências sensoriais,
representações, pensamentos e lembranças.
Elaboração:- construção do pensamento que utiliza dados ou elementos para fins
conceituais; composição, preparação.
Enlevo:- ato ou efeito de enlevar; enlevação, enlevamento,
sensação de êxtase, arroubo, deleite.
Êxtase:- estado de quem se encontra como que transportado para fora de si
e do mundo sensível, por efeito de exaltação mística ou de sentimentos muito
intensos de alegria, prazer, admiração, temor reverente etc.
Imolação:- ato de sacrificar-se, renúncia, abnegação.
Indelével:- que é durável, permanente, que não se pode destruir, suprimir ou
fazer desaparecer totalmente.
Introspecção:- reflexão que a pessoa faz sobre o que ocorre no seu íntimo, sobre
suas experiências. Observação e descrição do conteúdo (pensamentos,
sentimentos) da própria mente.
Metamorfose:- mudança completa de forma, natureza ou de estrutura;
transformação, transmutação.
Mitigar:- tornar(-se) mais brando, mais suave, menos intenso (geralmente
dor, sofrimento etc.); aliviar, suavizar, aplacar.
Pária:- pessoa mantida à margem da sociedade ou excluída do convívio
social.
Saga:- nome dado pelos romanos às bruxas e feiticeiras, por extensão:
efeito inexplicável e sobrenatural ocasionado pelo ato de magia.
Samaritano:- que ou aquele que é bom, caridoso, salvador.
Senda:- caminho estreito usado pelos
pedestres ou pelo gado de tamanho pequeno, atalho, vereda, sendeiro.
Simbiose:- associação entre seres vivos na qual ambos são beneficiados,
consortismo, associação íntima entre duas pessoas.
Taumaturgia:- arte de atrair ou de impressionar pessoas, com milagres ou
atos prodigiosos.
Transcendental:- na metafísica, especialmente a neoplatônica e a escolástica,
diz-se do ser ou princípio divino que, em sua perfeição e poder absolutos, está
situado além da realidade sensível.
Volição:- capacidade, sobre a qual se
baseia a conduta consciente, de se decidir por uma certa orientação ou certo
tipo de conduta em função de motivações.